As pelancas do saudosismo
Saudosismo, um abrigo ou um abismo? Fico imaginando a
bordo de um delírio quase boçal o que faria o Homo sapiens se, infeliz e
entediado nas savanas, desejasse voltar a ser macaco. E naqueles tempos,
desejar era permitido. Hoje, desejar pode dar cadeia pois fede a assédio. O
desejo, quando exposto, vira crime com direito a ataques de pelancas do
esquadrão da brochura.
Dizem que o saudosismo atinge o pico quando o mundo
apresenta sinais de falência social, política, cultural, etc. É quando muitos entram
no seu túnel do tempo particular e vão parar, por exemplo, no Rio Bossa Nova.
Naquele tempo o Rio era uma cidade de verdade e não esse
lixão disforme (em todos os sentidos) em que foi transformado em sua vergonhosa
mendicância a céu aberto. O Rio era inteligente, antenado, era vanguarda e, o
mais importante, era a capital do país.
O cara entra no túnel do tempo em 2018 e do outro lado
beija a boca de 1959 que mostrava um Brasil mais feliz. O presidente era
risonho como Aecinho, bem humorado como Aecinho e mineiro como Aecinho.
Juscelino Kubitschek, conhecido
como presidente Bossa Nova, vivia as gargalhadas e, executando um programa de
governo ousado, jogou o país na roda do progresso. Atenção, eu escrevi
progresso e não desenvolvimento.
O nosso angustiado saudosista fica maravilhado com 1959 e
nem repara que o presidente Bossa Nova vai destruir o Brasil tomando duas
decisões que estuprariam a nação moral, política e economicamente:
1 – Construiu Brasília e transferiu a capital do Rio de
Janeiro para lá. JK transformou o carioca nesse dejeto que aí está. Mais: no
meio do cerrado, os políticos, juízes e similares fazem o que bem entendem,
longe das pedradas que eventualmente levariam no Rio.
2 – Acabou com as ferrovias no Brasil ao entregar os
cofres nacionais a indústria automobilística, ao contrário da Europa, Ásia e
América de cima.
Em suma, o risonho e vaselina JK detonou tudo, pariu uma dívida
pública monstruosa e uma inflação hedionda, turbinada pela incompetência dos
seus sucessores: Jânio Quadros e João Goulart.
E o nosso saudosista, inebriado com os violões bossanovistas na areia de Copacabana ou com o samba de qualidade nos morros da
cidade, não percebeu que cinco anos depois viria o golpe de 1964 que, perto do
AI-5 de 1968 (50 anos dia 13 de dezembro) foi bala Juquinha. E quando o monstro pôs o canhão para fora, o saudosista quis voltar, mas percebeu que haviam
roubado até o seu túnel do tempo particular.
Há quem diga que o saudosismo é o refúgio emocional dos
infelizes, o grupo “dos tempos da Panair”, “dos tempos do twist”, “dos tempos
da chácara da dona Eulália”. Já ouvi um cara dizer que tem saudade até “dos
tempos da gonorreia”, segundo ele, "um mal romântico".
É lógico que o Brasil e boa parte do mundo vivem uma era
bizarra, moral, social, politicamente. Mas o que fazer se esse o tempo que
dispomos é o agora e que nada é mais importante do que o presente, como lembram o bom senso e
os existencialistas (ainda existe algum?).
Ouço gente reclamando do excesso de tecnologia, que está
tudo automatizado, que ninguém se fala, que o whatsapp e outras plataformas
chupam as almas do planeta, enfim, além de ir tentar morar na Coreia do Norte,
Venezuela ou Cuba, o que se pode fazer? Nada. Porque nada detém o avanço da
humanidade. Seja esse avanço para o abrigo ou para o abismo.
Há tempos me perguntaram se sou saudosista em relação ao rock de
raiz e expliquei, grosseiramente, que esse papo de raiz é coisa de botânico.
Pedi desculpas e disse, com todas as guitarras, que não gosto de Elvis e muito
menos de toda a geração do rock dos anos 50 por uma razão muito simples: só
comecei a existir musicalmente por volta de 1965, quando conheci The Beatles,
The Rolling Stones, The Troggs, The Who. Não fui do tempo de Elvis, Paul Anka, Celi
Campello, Bill Haley e seus Cometas, que, aliás, assisti num clube em São
Gonçalo (RJ) nos anos 70. Saí no meio do show, pois o som estava péssimo.
O problema é que revelei a minha falta de interesse no
rock dos anos 50 numa entrevista na TV, em rede nacional. Os caras me
perguntaram o que eu achava das bandas dos anos 80 que estavam partindo para o
rockabilly e eu me abri, como se estivesse de papo num elevador.
Muitos reagiram mal a entrevista dizendo que eu havia
metido o pau no rock dos 50. Mentira! Eu disse que não gosto e não que era
ruim. Na boa, modéstia no telhado, conheço bem todos os roqueiros desde a
primeira nota de “Rock Around The Clock”, li vários livros, ouvi todos os
discos (eu disse todos e não alguns), mas o tufão Beatles/Stones/Who me tragou
com tamanha força que nem pensei em anos 50. Fui em frente a partir de 1965.
Sinto vontade de escrever que o pior rock dos anos 50 é
infinitamente melhor do que qualquer bosta que frequenta o hit parade de hoje,
mas não acho de bom tom. Parece coisa de saudosista.
Minha relação com o passado é meio caótica. Sinto muita
saudade de pessoas do bem que morreram, mas das coisas em si não sinto nenhuma
falta. O fato de todo mundo achar que hoje está tudo péssimo está longe de ser
um surto de saudosismo.
Em vez de se afogar no saudosismo deveriam lutar para
tirar o cancro do hoje, a começar pelos políticos e similares, que foram
escolhidos (todos eles), por nós. Mas isso dá trabalho.
P.S.
-
Você pode até dizer
Que eu estou por fora
Ou então
Que eu estou inventando
Que eu estou por fora
Ou então
Que eu estou inventando
Mas
é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem
(Belchior, “Como Nossos Pais”)
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